quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Crasch!

"Não entendi muito bem o que você me falava. Havia um descompasso entre o movimento dos seus lábios, seus olhos assustados e o tom calmo da sua voz. Só depois caiu a ficha: você estava me dando adeus... Fiquei ali parado, entorpecido. Eu era toda inação. Fui tomado por um senso radical de economia que me informava que diante do desastre eminente que empurrava minha vida para o abismo, qualquer gesto seria inútil. Pura perda de tempo. Foi assim, com o corpo desmontado numa cadeira, que vi a porta se abrir e em seguida se fechar. Um piscar dos olhos meus e você já tinha ido.. È curioso como a gente vai se acostumando com as pessoas que amamos ou que pensamos amar. O tempo de convivência parece ter o poder de entorpecimento das memórias de nossas identidades individuais. As recordações sobre o estranho que acolhemos um dia em nossa simpatia se dissolvem, na exata medida em que vamos assimilando os cheiros do corpo, o gosto da saliva ou do suor, a imagem invertida de nós mesmos...  





Estranha despersonalização esse efeito temporal que no acumulo dos dias bons e alguns ruins, vai
apagando em nós, a noção obvia de que o outro é um outro. È insidioso o trabalho que a convivência opera, nos ocultando a verdade elementar de que as liames que nos unem no amor são mais de natureza imaginaria do que biológica... Mas na hora do adeus é o corpo que paga por esse estado de alienação. Não que eu pudesse alegar ter sido pego de surpresa ou que tua partida tivesse algo de desleal. Quando a porta se fechou, atras de você, eu era a própria consciência das tantas advertências, que entre soluços e lagrimas, ou aos gritos irritados as vezes, suplicante você me havia endereçado... Na verdade eu me sentia de tal modo ligado a você que tudo aquilo não me parecia senão como um teatro, que você como uma parte de mim, se rebeleva contra a minha recusa de abrir mão daquilo que, para além de você, tambem me fazia gozar...e que a sua obstinada recusa em aceitar fazia incendiar e me fazia reincidir. Veja, já estou de novo aqui colocando a culpa em você. Jurei para mim mesmo que eu não faria isso de novo. Nos meus momentos mais lucidos essa foi a unica condenação que sempre assumi. Não haveria de haver culpados... Não dessa vez! Mas na verdade eu nunca acreditei que você tivesse a coragem suficiente para ir embora. Talvez porque na minha mente embaralhada nem você, nem eu, seríamos suficientemente corajosos para nos deixarmo-nos ficar para trás, nem um, nem o outro. E estes pensamentos todos que começavam a se insinuar em minha cabeça, não me faziam bem. Então fiquei muito enjoado e comecei a vomitar..."

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lisboa dividida.



Às margens do Rio Tejo, medito.
Meu pensamento é quase um grito.
Ó alma divida, assim Lisboa, 
como minha alma te vejo
entre o ser e o seria.
Doce no correr do tempo,
ancorado o meu coração,
passivo como um pobre barco, 
no Cais do Sodré, ao final do dia.
Cotidiano num fazer sempre tudo igual
como a perene tabuleta de uma tabacaria
"casado, fútil, quotidiano e tributável"
boa companhia, sopa quente e meias,
que mal na inocencia poderia haver, afinal?
Outro tempestade, disso tudo distinto,
 raivoso de si, sem motivo aparente
um "doido, com todo o direito a sê-lo"
sou em Lisboa, as pequenas janelas de uma cave
de onde vejo e ignoro todo o movimento, 
que vem de fora, das formigas humanas
que te invadem as praças e monumentos.
Outro, outro,  silencios gozozos, 
imensos e profundos, furia espiritual, pura volupia, 
frugalidade de sentimentos, hostias do pensamento
um pastelzinho de Belem, vale tanto quanto uma mulher,
quanto  filhos e quanto ter um lar?
Desertar-me de toda convenção, 
declarar-me um sem patria, um sem nação,
errante, mergulhar profundamente nessa indisposição
aceitar que ela me leve ao fundo,
consuma-me ao ponto em que
um calice de vinho do Porto,
seja toda rendição.